domingo, 7 de junho de 2020

Psicoterapias Corporais

Por *Périsson Dantas do Nascimento



As psicoterapias corporais abrangem um corpo teórico e técnico na psicologia clínica, que são derivadas das contribuições elaboradas por Wilhelm Reich (1897-1957), que iniciou sua carreira como psicanalista e elaborou uma série de inovações clínicas de inclusão do corpo no processo psicoterápico.  Essas abordagens possuem um cunho holístico e psicossomático, ou seja, consideram que o ser humano é um ser integrado dialeticamente em suas duas dimensões constitutivas: processos mentais e corporais, que se unem na dimensão energética. 

Ao falar em energia, na perspectiva corporal, parte-se do pressuposto que para a manutenção das células vivas, é necessária uma produção de energia biológica por meio do metabolismo, que queima nutrientes advindos da alimentação, juntamente com o oxigênio do ar, produzindo calor, alimentando as células e excretando as substâncias químicas desnecessárias. Daí a ênfase, nas intervenções em psicoterapia corporal, na respiração como processo fundamental para a produção de energia e a autorregulação do organismo. Além disso, para a produção de energia, é importante que as células estejam em contínuo movimento, outro pilar básico de intervenção nessa abordagem.

As psicoterapias corporais trabalham com a hipótese central de que a história de vida de cada pessoa está inscrita no corpo, na forma de tensões, fluxos energéticos e formas específicas de expressão e constituição, para além da genética. Dificuldades e frustrações vividas no desenvolvimento infantil repercutem em fixações, mais especificamente, em traumas de desenvolvimento, que desencadeiam na pessoa a necessidade de construir defesas para evitar entrar em contato com as experiências desagradáveis. Quando uma frustração é vivida repetida e intensamente, essas defesas configuram um padrão rígido de funcionamento na vida, de forma a proteger a pessoa de reviver experiências de vulnerabilidade na relação com as pessoas na vida adulta. Tal conjunto de defesas, que se enraízam e protegem o ego do sujeito, é definido em psicoterapia corporal como estrutura de caráter, sendo a base de compreensão dos sintomas neuróticos.

Como trabalhamos com um raciocínio integrativo, é necessário entender que esse complexo sistema de defesas também está ancorado no corpo. Os traumas de desenvolvimento provocam uma alteração na regulação do sistema nervoso autônomo, que prepara o corpo para reagir a ameaças e estímulos estressores. Nesse sentido, o sistema nervoso simpático torna-se superativado, tendo como principal repercussão um tensionamento crônico da musculatura, com vistas a cortar o contato da pessoa com as emoções, sentidas como ameaçadoras (medo, raiva, tristeza, prazer, por exemplo). A contração crônica da musculatura, que se dá em diferentes segmentos horizontais no corpo, é definida como couraça, que bloqueia as sensações, o potencial respiratório e inibe somaticamente a capacidade pulsatória do corpo como um todo. O trabalho clínico visa flexibilizar, de maneira integrada, psiquismo e corporeidade, visando proporcionar uma melhor autoconsciência, por meio de diferentes intervenções, reconhecendo o limite de cada pessoa e o seu fluxo energético, de forma propiciar uma melhor regulação das emoções, um contato mais prazeroso com a sexualidade e a vivacidade/espiritualidade.

Em termos epistemológicos, as psicoterapias corporais estão enraizadas nas escolas psicodinâmicas, advindas da psicanálise freudiana. Reich foi um discípulo de Freud e trabalhou ativamente, no início de sua carreira na década de 1920, no desenvolvimento de estratégias técnicas mais eficientes no trabalho clínico da Psicanálise. Assim, as psicoterapias corporais acreditam na dimensão inconsciente do psiquismo, em que a constituição dos mecanismos de defesa do caráter é estruturada nas diversas etapas do desenvolvimento psicossexual da criança (oral, anal, fálica, latência), culminando no Complexo de Édipo. 

O próprio conceito de energia nas abordagens deriva da inquietação de Reich com a ideia de libido, considerada por Freud como a energia que é investida em si mesmo e nos objetos e dá movimento afetivo ao psiquismo. Com as investigações biológicas de Reich sobre a sexualidade humana, o autor associa libido com a bioenergia metabólica, base de todas as células vivas pulsantes. Pulsão é interpretada como pulsação de vida, subdividida em dois grandes fluxos: contração, caracterizada em uma volta do organismo vivo para dentro, perdendo o contato com o ambiente; expansão, que é o movimento em direção para fora, para o contato com o mundo.

Outro ponto importante, em termos de herança que as psicoterapias corporais assimilam da Psicanálise, diz respeito aos fenômenos de transferência, resistência e contratransferência no espaço terapêutico. Como sabemos, a transferência, grosso modo, implica em projeções de expectativas infantis, de padrões de vínculo, que são atribuídas do paciente ao psicoterapeuta na situação clínica. A contratransferência relaciona-se ao movimento contrário, projeções emocionais, geralmente infantis, do psicoterapeuta para o paciente. 

Esses processos são considerados, na abordagem, como uma forma de resistência, ou seja, estão a serviço dos mecanismos de defesa do caráter para evitar o contato com as emoções de frustração e desviar a atenção das intervenções terapêuticas, como uma forma de sabotar o trabalho clínico. Esses aspectos são trabalhados continuamente como movimentos emocionais e energéticos, por meio de uma aliança inicial com a resistência e o sistema de defesas infantis e psicossomáticos dos clientes, pois são considerados mecanismos de sobrevivência emocional para evitar a dor. A proposta é facilitar o processo de expressão da angústia e, posteriormente, realizar confrontações que sejam necessárias para flexibilizar a rigidez e os padrões limitantes de visão de si mesmo e das relações.

Abordaremos, de maneira sintética as principais escolas de psicoterapias corporais, mais conhecidas em nosso país:


  Vegetoterapia Caracteroanalítica: também definida como Análise Reichiana, advém dos desdobramentos técnicos elaborados por Wilhelm Reich e, posteriormente, sistematizados pelos psiquiatras Ola Raknes e Federico Navarro, a partir dos anos 60. Nessa abordagem, o psicoterapeuta faz um diagnóstico diferencial de estruturação dos mecanismos de defesas de caráter do paciente, bem como a leitura corporal do encouraçamento, que acontece por meio de entrevistas iniciais de anamnese e análise da busca do paciente pela psicoterapia. É elaborado um plano de ação terapêutica a partir da compreensão caracterial do paciente, que obedece um padrão sistemático de flexibilização e desbloqueio dos diferentes segmentos de contração neuromuscular no corpo, seguidos de verbalização e análise somatopsicodinâmica. As intervenções são definidas como actings: movimentos neuromusculares de ativação que buscam ampliar a percepção do encouraçamento e restaurar a pulsação, através de descargas emocionais neurovegetativas;

  Análise Bioenergética: Criada por Alexander Lowen na década de 1950, nos EUA, essa abordagem parte dos principais pressupostos reichianos, com algumas reformulações centrais. A principal delas diz respeito à sistematização da teoria do desenvolvimento das defesas de caráter, considerando os diferentes momentos evolutivo do desenvolvimento psicossexual da criança. Lowen elabora cinco tipologias de caráter, que são: equizoide, oral, narcisista/psicopático, masoquista e rígido, com um estudo detalhado sobre sua etiologia, constelação psicodinâmica, características defensivas, leitura corporal das couraças e projetos terapêuticos para cada uma dessas estruturas. Sua principal contribuição terapêutica diz respeito ao trabalho com o grounding, definido como aterramento – a capacidade que a pessoa tem de sustentar-se na vida, observada a partir do contato que o paciente tem com suas pernas e pés no chão. Inicia-se um novo paradigma de ação terapêutica que não se restringe, como na Vegetoterapia, a intervenções com o paciente na posição deitada no divã, mas chamando o paciente para ficar também de pé, considerada uma posição progressiva e ativa mediante a vida. Lowen também elaborou uma série muito rica e criativa de intervenções terapêuticas, na forma de exercícios de mobilização muscular e técnicas de enfatizam o contato e expressão das emoções, seja na forma individual ou em grupos de movimento;

  Psicologia Biodinâmica: Elaborada por Gerda Boyesen na Noruega, nos anos 1950, e desenvolvida em Londres a partir da década de 60. A Psicologia Biodinâmica trabalha com o pressuposto que existe uma digestão psicossomática da vida, ou seja, os intestinos seriam um centro importante no processamento da energia corporal e das emoções, sendo afetados diretamente pelos traumas e estresses nos processos de desenvolvimento. Para Gerda, o objetivo terapêutico está focado no trabalho da recuperação da pulsação psicoperistáltica, ou seja, de propiciar, por meio da conversa terapêutica, do trabalho suave com a musculatura e diversas manobras de toques e massagens, um melhor funcionamento intestinal, que repercutiria na melhoria do funcionamento do organismo como um todo, propiciando uma limpeza das toxinas emocionais. Uma grande contribuição da Biodinâmica está na hipótese da existência de couraças viscerais e dos tecidos, para além das couraças musculares, enfatizadas por Reich; 

  • Psicologia Formativa: Elaborada por Stanley Keleman a partir da década de 70 nos EUA, possui uma perspectiva somática-existencial, tendo como base uma visão fenomenológica do corpo vivo: sede de toda a experiência, que busca cada vez mais forma em sua pulsação. Keleman elabora uma compreensão da dinâmica e formação processual do organismo, visto em sua arquitetura tissular geneticamente programada, finita, em permanente construção e desconstrução, pulsando segundo afetos, com tubos dentro de tubos, com suas câmaras e válvulas, sempre em busca de mais vida, inflando, esvaziando, adensando, enrijecendo de acordo com as experiências emocionais. Elabora estudos sobre a anatomia emocional e os padrões de distresse somático, que deformam o corpo, seja inflando ou adensando os seus tecidos. Trabalha com um método de construção e conscientização contínua das polaridades de pulsação corporificada no corpo; 
  Biossíntese: Criada por David Boadella, na década de 70, na Suíça, recebe influências de todas as abordagens anteriores, tendo em vista que o autor possuiu experiências e formação em todas elas. A Biosssíntese é definida como Integração da Vida e constitui-se como um sistema aberto de conhecimento e práticas terapêuticas na abordagem corporal, que tenta dialogar com as diferentes correntes de pensamento reichianas e neorreichianas. Traz como um grande diferencial a influência da psicologia pré-natal na compreensão da subjetividade humana, possuindo uma visão embriológica da personalidade, entendida a partir dos diferentes folículos embrionários que configuram três grandes dimensões de nossa existência: ectoderma (responsável pela formação da pele e sistema nervoso – configurando nossa dimensão de pensamento); mesoderma (responsável pela musculatura e sistema ósseo – configurando a dimensão de movimento) e ectoderma (responsável pela formação das vísceras e tecidos profundos – responsável pela dimensão sentimento). Recebe influência dos autores da teoria das relações objetais, enfatizando a importância e complexidade das relações mãe/bebê na constituição do psiquismo, reformulando a necessidade de intervenções corporais que sigam o fluxo próprio de ressonância com os pacientes. A partir da leitura embriológica, há uma reformulação dos princípios terapêuticos de acordo com o sentido integrador dos clientes, que são: facing/sounding (ectdodérmicos – trabalho com o contato de voz e visual com os pacientes); grounding (mesodérmico – ampliação do conceito elaborado por Lowen, considerando todas as formas de sustentação no próprio corpo) e centering (endodérmico – focalizado na respiração, meditação e autopercepção consciente do corpo e funcionamentos internos).

Como vimos, as psicoterapias corporais possuem um enorme escopo de atuação e uma diversidade muito rica em seus pressupostos teóricos e técnicos. É importante ressaltar que cada uma dessas abordagens possui institutos internacionais que pensam a sua formação e produzem muito material de reflexão a partir das novas descobertas na clínica, além de promover muitos eventos nos Brasil e exterior. Atualmente todas as abordagens possuem diálogos muito profícuos com os autores da neurociência e da neuropsicologia das relações interpessoais, tais como Allan Schore, Daniel Siegel, Stephen Porges, Antonio Damasio, Louis Cozolino, entre outros, que participam como conferencistas nos congressos e trazem contribuições que comprovam a eficácia de seus pressupostos

Finalizamos nosso texto convidando para visitarem os sites de diferentes instituições das abordagens aqui citadas no país, onde poderão encontrar diversas informações, materiais para leitura, cursos de formação clínica, atualização e capacitação.

Referências:

  Vegetoterapia Caracteroanalítica: www.centroreichiano.com.br www.institutoibar.com.br



  Psicologia Biodinâmica: www.ibpb.com.br



* Doutor em Psicologia Clínica – PUCSP, Professor Adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Estadual do Piauí, Local Trainer e Supervisor Certificado pelo Instituto Internacional de Análise Bioenergética, onde é Coordenador do Comitê Internacional de Pesquisa.

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