quarta-feira, 1 de julho de 2020

Sobre a Psicanálise

Por *Ângela Carvalho


Quando publicou sua primeira obra, oficialmente psicanalítica, em 1900, Freud ainda construía as bases do arcabouço teórico da psicanálise.  O pai da psicanálise partiu de sua escuta clínica, do acompanhamento de casos clínicos, para a elaboração de suas compreensões sobre o funcionamento psíquico, formação de sintomas e sofrimento psíquico. Neste exercício contínuo de soberania da clínica, as elaborações teóricas foram revisitadas inúmeras vezes, em um permanente movimento de revisão e reformulação de conceitos. Esta atitude freudiana de extremo compromisso com a fidedignidade de sua teoria, destaca-se em sua trajetória.

         A psicanálise é uma teoria sobre o funcionamento mental, uma técnica de tratamento dos sofrimentos psíquicos e um método de investigação dos processos mentais. Nasceu sustentada neste tripé, embebida no contexto vitoriano e burguês no qual vivia Freud e seus primeiros seguidores. Em um momento histórico em que o pensamento dito científico era dominado pelo cogito cartesiano, Freud coloca em cena a soberania dos processos inconscientes sobre a racionalidade. Foram as queixas histéricas com seus sintomas conversivos que fisgaram a curiosidade do jovem neurologista Sigmund Freud, fazendo-o abordar a problemática das pacientes a partir do universo de significações, desejos e repressões. Nascia, assim, a psicanálise, independente da psicologia e da medicina, com uma estrutura própria e com um objeto muito bem definido: o inconsciente.

        Nos primórdios do desenvolvimento de sua técnica psicanalítica, Freud utilizou a hipnose e, posteriormente, a sugestão diretiva, mas o avanço na compreensão do funcionamento psíquico e de suas leis, o levou a abandonar todo tipo de sugestão, adotando o método da associação livre de ideias como técnica basilar da psicanálise. A fala, livre e associativa, por parte do paciente e a escuta flutuante do analista são as condições necessárias para que os processos inconscientes, com seus mecanismos de defesa, sejam acessados e ressignificados. Desta feita, a associação livre, a escuta flutuante, o recalcamento, a transferência e o inconsciente formam os pilares básicos da teoria e da técnica freudianas.

        Apesar de nascer atrelada intimamente à prática clínica de consultório, a psicanálise adentrou em muitos outros campos e espaços, dando lugar à fala do sujeito do inconsciente em diversos espaços e contextos. Através do trabalho de psicanalistas como Melanie Klein e D. Winnicott, a técnica psicanalítica foi adequada ao tratamento de crianças, trazendo enormes contribuições para este campo. Nas últimas décadas, o campo de alcance da psicanálise se estendeu também à primeira infância e aos bebês, dando lugar à produtiva e importante clínica da intervenção precoce na psicanálise. Hoje podemos acompanhar o trabalho da psicanálise em diversas instituições, no campo da saúde e no social, muito além do tradicional consultório. A psicanálise também está presente nas universidades, embasando pesquisas e intervenções, dialogando com saberes distintos e enriquecendo seu corpo teórico/técnico. Destaco duas pesquisas, de muitas, no campo da clínica da intervenção precoce em psicanálise, que vêm trazendo contribuições inestimáveis para a psicopatologia materno-infantil, sendo elas: a pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos para o desenvolvimento infantil – IRDI e a pesquisa Preaut, esta ainda em andamento.       

        A pesquisa IRDI foi realizada no Brasil, com financiamento do Ministério da Saúde, tendo duração de 8 anos e produziu um protocolo validado para o acompanhamento do desenvolvimento emocional primitivo em crianças de 0 a 18 meses de idade. Toda a fundamentação teórica do protocolo teve a teoria psicanalítica como pilar e este instrumento mostrou-se valioso para a detecção precoce de possíveis problemas de constituição psíquica e psicopatologias em crianças pequenas.  A pesquisa Preaut, incialmente desenvolvida na França e posteriormente também no Brasil e em outros países, visa desenvolver um protocolo de indicadores de risco para o autismo em crianças a partir dos 4 meses e antes dos 3 anos de idade. Ambos os protocolos, construídos a partir da psicanálise, auxiliam os profissionais da saúde e da educação na possível detecção de sinais de problemas no desenvolvimento e na constituição psíquica de crianças, permitindo que uma intervenção seja realizada a tempo, antes que estruturações psicopatológicas se cristalizem.

        Certamente, quando criou a psicanálise, Freud não imaginava todo o alcance de sua teoria, muito menos os avanços tão fecundos em campos distintos de intervenção. Entretanto, devemos reconhecer o espírito investigativo e destemido do pai da psicanálise, que sempre fez questão de alimentar o avanço da sua teoria, deixando os caminhos abertos para reformulações necessárias. E não seria esse o verdadeiro espírito “científico”?



Referências:

Freud, S. (1969b). A interpretação dos sonhos. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (W. I. de Oliveira, Trad.; Vol. 5). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        

Maurano, Denise.Para que serve a psicanálise?— 3.ed. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010
Nasio, J. D. Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan. Rio de Janeiro. Zahar, 1995.

Kupfer MCM, Bernardino LMF, Jerusalinsky AN, Rocha PS, Lerner R, Pesaro ME. A pesquisa IRDI: resultados finais. In: Lenner R, Kupfer MC, editors. Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa. São Paulo: Escuta; 2008. p. 221-30




*Doutorado em Psicologia, em andamento (2017-2020), na Universidade Federal do Ceará- UFC. Mestrado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (2011), Pós-graduação em Psicologia Clínica pela Faculdade Santo Agostinho (2007), Graduação em Psicologia pela Faculdade Santo Agostinho (2007). Coordenadora do projeto de pesquisa e extensão em psicopatologia da infância - GEPEPI e da Liga LGBT da UESPI. Tem experiência em docência na área de Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde mental materno-infantil, psicopatologia da infância, constituição psíquica e clínica da intervenção precoce na psicanálise.


Nenhum comentário:

Postar um comentário