quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Desenvolvimento Humano e Psicomotricidade

 *Joana Soromenho e **Antonio Cesar Soromenho


Imagem: Créditos Pixabay


Os estudos em Psicomotricidade surgiram no final do Século XVIII, quando Itard, médico francês, ficou famoso pelo trabalho que desenvolveu com a reeducação de uma criança selvagem encontrada na cidade de Aveyron, França. Esta criança chamada de Víktor, foi encontrada com dez anos, tendo sido criada por lobos durante todo o seu desenvolvimento até então. Itard acreditava que os problemas de desenvolvimento apresentados pela criança tinham origem, não em fatores de ordem biológica e genética, mas no fato de não ter estado integrada na sociedade humana (FONSECA, 2008).

            Víktor durante os seus quarenta anos de vida é diagnosticado com idiotismo. Mesmo após trinta anos a ser estudado por médicos, nunca conseguiu,  apesar do treino diário, apresentar uma postura bípede, plantar os pés no chão, desenvolver uma comunicação oral adequada, comer com talheres, para além de várias outras funções que eram “expectáveis”, na época, para um adequado convívio em sociedade. Em função de todos esses comprometimentos e das dificuldades na aprendizagem de novos comportamentos, Víktor desenvolveu, a nível fisiológico, algumas características bem marcantes e visíveis tais como dentição para arrancar e rasgar a pele (como os lobos). Os estudos sobre o menino de Aveyron foram revolucionários para a sociedade inatista da época pois a partir daí surgiram novos estudos e conceitos como psiquismo, motricidade, estudos sobre o desenvolvimento humano passando da ação curativa para a ação psicodinâmica, que quebraram o dualismo mente/corpo. Os progressos obtidos por Viktor no processo de reeducação constituem, ainda hoje, um testemunho precioso.

            A História do desenvolvimento humano abrange os quatro grandes pilares da Psicomotricidade: a macro, oro, micro e grafomotricidade. Durante muito tempo fomos coletores, esperávamos os animais de maior porte saciarem e coletávamos os seus restos para podermos nos alimentar. Éramos de maior porte do que somos hoje. A nossa história de desenvolvimento se inicia na macromotricidade e, com o passar do tempo, houve uma maturação e desenvolvimento neurofisiológico tendo havido uma redução na caixa craniana e no porte físico. Surgiram, então, os movimentos finos e começamos a desenvolver instrumentos, a criar novas estratégias de planejamento de caça, fazer casas nas árvores e, com o uso desses recursos, passamos a ser mais efetivos em assegurar a nossa sobrevivência, alimentação, procriação, dando início assim à construção de comunidades o que representou o ponto de partida para o desenvolvimento da nossa  oromotricidade. O nosso aparelho oromotor foi evoluindo enquanto as formas de comunicação e o repertório de palavras e símbolos era ampliado. Foi através dessa evolução que começamos a escrever a nossa história nas paredes através da maturação e desenvolvimento da função psicomotora mais complexa que nos diferencia de fato de todos os outros animais, a grafomotricidade. Tudo isso ocorreu em função da maturação do nosso lobo frontal, hipotálamo, lobo parietal, occipital, glândula pituitária e tronco encefálico bem como do desenvolvimento do nosso córtex motor que envia as informações para a ação motora. Deste modo, a Psicomotricidade como intervenção denota a necessidade de mobilizar e reorganizar as funções psíquicas, relacionais, emocionais do indivíduo, em todo a sua dimensão desde, bebê até a fase adulta, melhorando a conduta consciente e o ato mental, onde está inerente a elaboração e execução do ato motor (COSTA, 2009).

            A psicomotricidade tem por base um grupo de autores europeus, russos e norte-americanos.  Entre os europeus destacam-se: Wallon, que define os prelúdios psicomotores do pensamento. Piaget, com a embriologia mental e motora. Ajuriaguerra, com a concepção do corpo e a organização psicomotora de base. Havendo contribuições científicas recentes que continuam esclarecendo questões da nossa área, tais como os estudos do português António Damásio.

            Os principais autores russos são: Vygotsky, perspectiva sócio-histórica da psicomotricidade. Luria, com a organização neurofuncional da psicomotricidade.  Bernstein, com a ideias sobre coordenação e regulação cibernética da psicomotricidade e Zaporozhets e Elkonin que classificam a evolução dos hábitos motores.

            Dentre os autores norte-americanos, destacam-se: Kephart, sobre aquisição e generalização motora; Cratty e a pirâmide do comportamento perceptivo motor. Getman, sobre o complexo visuomotor. Frostig, com as habilidades visuoperceptivas; Barsch e a teoria movigenética. Cruickshank que esclarece sobre disfunções perceptivomotoras e disfunção cerebral e por fim Ayres, com a teoria da integração sensorial.

            Na Avaliação e intervenção Psicomotora, o psicomotricista se propõe a intervir nos fatores classificados por Luria. Segundo Luria, existem sete fatores que trabalham em conjunto, de forma integrada, e que contribuem para a organização psicomotora global. A organização destes sete fatores acontece através de uma hierarquia vertical (FONSECA, 1995).

            tonicidade ocorre através de aquisições neuromusculares, conforto tátil e integração de padrões motores antigravídicos (muito presente do nascimento aos 12 meses); a equilibração se manifesta na aquisição da postura bípede, segurança gravitacional, e desenvolvimento de padrões locomotores (dos 12 meses aos 2 anos); a lateralização se dá através da integração sensorial, investimento emocional, desenvolvimento das percepções difusas e dos sistemas aferentes e eferentes (dos 2 aos 3 anos); a noção do corpo ocorre através da noção do Eu, conscientização corporal, percepção corporal, condutas de imitação (dos 3 aos 4 anos); a estruturação espaço temporal se manifesta por meio do desenvolvimento da atenção seletiva, do processamento de informações, coordenação espaço-corpo, proficiência da linguagem (dos 4 aos 5 anos); a praxia global ocorre através da coordenação oculomanual e oculopedal, planificação motora, integração rítmica (dos 5 aos 6 anos); a praxia fina através da concentração, organização, especialização hemisférica (dos 6 aos 7 anos).

            A intervenção Psicomotora pode ser aplicada em três modelos e contextos: o educativo que promove o desenvolvimento psicomotor e o potencial de aprendizagem; o reeducativo ou terapêutico que ultrapassa problemas que comprometam a adaptabilidade, o desenvolvimento, a aprendizagem e o preventivo que visa a estimulação do desenvolvimento, melhorias e manutenção das competências de autonomia.

            Quando falamos em intervenção, partimos do pressuposto que foi feita uma avaliação rigorosa das funções daquele indivíduo, um planejamento adequado para maximizar habilidades e potencialidades e minimizar dificuldades com objetivos bem específicos para cada caso. No entanto, como objetivos gerais, podemos classificar a intervenção psicomotora com os objetivos de mobilizar e reorganizar as funções psíquicas, relacionais, emocionais do indivíduo, em toda a sua dimensão durante toda a vida; melhorar a conduta consciente e o ato mental, onde está inerente a elaboração e execução do ato motor; fazer com que as sensações e as percepções passem a níveis de consciencialização, simbolização e conceptualização; harmonizar e aumentar o desenvolvimento global da personalidade e de adaptabilidade social, ou seja, o potencial motor, afetivo-relacional e cognitivo e fazer do corpo uma síntese integradora da personalidade onde ocorre harmonia entre as relações do psíquico e da globalidade motora.

            Concluindo, “A aprendizagem humana começa por ser motora: macro, micro, oro, grafo e sociomotora. Antes de aprender a ler, escrever e calcular, todo o ser humano precisa integrar psiquicamente ou superiormente as experiências motoras e espaciais. Sem tal organização e orientação, as dificuldades de aprendizagem tem mais probabilidade de ocorrer, o que é confirmado pelos diversos autores que citamos.” (FONSECA; OLIVEIRA, 2009).

  

Referências:

FONSECA, V. Desenvolvimento psicomotor e aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2008.

COSTA, D. F. Psicomotricidade na educação infantil. 2009. Disponível em: https://semanaacademica.org.br/system/files/artigos/psicomotricidade_na_educacao_infantil_0.pdf. Acesso em: 27 abr. 2019.

FONSECA, Vitor; OLIVEIRA, Joana. ”Aptidões Psicomotoras e de Aprendizagem”. Ed. Âncora, 2009, p.24.

 

Autores:

*Joana Soromenho de Oliveira (Pedagoga, Psicomotricista, Psicopedagoga). Licenciatura em Pedagogia – Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Brasil. Pós-gradução em Psicopedagogia EPCE- Teresina, PI, Brasil. Certificado Internacional de Psicomotricidade – CISTC no Institut Supérieur de Rééducation Psychomotrice ISRP, Organisation Internationale de Psychomotricité et de Relaxation, OIPR, Paris, França.Especialista em Educação Especial pela FMH-Universidade Técnica de Lisboa, Portugal.

 **Antonio Cesar Soromenho Santos de Oliveira (Psicólogo CRP 21/04062. Especialista em Psicomotricidade com Ênfase em Educação Especial – IMPAR. Especializando em Neuropsicologia – IPOG. Professor de Orientação Profissional. Sócio da Clínica Soromenho. Membro da comissão de Psicologia do Esporte CRP-21. Idealizador do Modelo TEA Jutsu.

 

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Traumas e suas repercussões na personalidade

*Por Eleonardo Rodrigues

 

O estudo da personalidade motiva a atenção tanto da população em geral quanto do mundo acadêmico. No campo das psicoterapias e recente surgimento das neurociências há um esforço de melhor compreensão terapêutica da fenomenologia da personalidade circundando o entendimento harmonioso dos conceitos de traços, temperamento e caráter quando desadaptados do limite do sujeito, favorecem os respectivos transtornos de personalidade.

A Personalidade é construída dinamicamente com os construtos do temperamento e caráter. O temperamento refere-se à parte mais inata e instintiva, com raízes no comportamento biológico. Existem evidências de que certos tipos de temperamento e padrões comportamentais estão presentes desde o nascimento. Tais características favorecem tendências que podem ser ampliadas ou diminuídas de acordo com a experiência do indivíduo.

O caráter constitui o conjunto das disposições individuais considerado em seu possível desenvolvimento psicossocial, aprendido no meio ambiente que influem na personalidade, ou seja, ele representa uma maneira de ser potencial, dinâmica, voltada para o futuro (Rodrigues, 2010).

O conceito de personalidade, por outro lado, envolve um estilo de vida multidimensional no qual as tendências inatas do indivíduo interagem com o meio ambiente para produzir sentimentos, pensamentos e comportamentos de uma perspectiva subjetiva.

De acordo com Beck (2005), os padrões estáveis que constituem a personalidade refletem estratégias que foram construídas na adaptação do sujeito ao mundo. Na interação com o contexto e figuras de referência, o indivíduo desenvolve maneiras de se adaptar, em um processo contínuo de aprendizagem.

Concepções primitivas e primárias são formadas. Fatores genéticos também atuam, mas podem ser exacerbados ou minimizados dependendo das interações com o ambiente. As experiências de tenra infância são importantíssimas, pois são as fontes dos primeiros esquemas mentais. Essa aprendizagem terá forte influência determinante sobre o modus operandi do sujeito. Ao longo da vida, novos esquemas podem ser formados e antigos podem ser reformulados.

Créditos: Pixaby

O que é trauma?

Trauma constitui prejuízo e estado mental ou comportamental desorganizados, causados por estresse psicológico ou físico, relacionados a eventos que provoquem medo agudo ou crônico. Corroboram com essa ideia difundida de forma incipiente sobre trauma e memória na etiologia da histeria, Martin Charcot, Pierre Janet e Sigmund Freud, no final do século XIX, os mesmo argumentam que o trauma psicológico é resultante de uma situação vivenciada, testemunhada ou confrontada pelo indivíduo, na qual houve ameaça à vida ou à integridade física e/ou psicológica de si próprio ou de pessoas a ele ligadas (Rodrigues, 2010).

Abuso ou maus-tratos em crianças estão associados a um risco substancialmente aumentado de psicopatologia na adolescência e vida adulta. Assim, diferentes aspectos estão envolvidos na sintomatologia do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), tal como: a natureza do evento traumático, o número de exposições, a vulnerabilidade do indivíduo e a reação desse frente ao estressor, a rede de proteção após o evento.

Maus-tratos são um fenômeno complexo, que se manifesta em contextos de pobreza familiar, conhecimento e habilidade inadequada dos pais em relação ao desenvolvimento e cuidado infantil, interrupções nas relações pais-filhos, funcionamento psicológico parental comprometido.

Efeito do trauma no cérebro

Andreasen (2005) e Rodrigues et al. (2011), sugerem que o TEPT é um exemplo claro da influência das experiências psicológicas sobre as reações neurobiológicas.

A exposição a traumas desencadeia uma série de eventos que influenciam as vias cerebrais de alerta por meio da amígdala; a liberação de adrenalina e cortisol pode produzir lesões no hipocampo. De acordo com Rodrigues (2010), estudos confirmam que indivíduos maltratados tem maior prevalência em transtornos depressivos, ansiosos e por uso de substâncias, maior risco de suicídio e pior resposta ao tratamento do que indivíduos não maltratados com os mesmos diagnósticos.

Tratamento

            Do ponto de vista terapêutico, diante de um paciente que vivenciou trauma significativo, é preciso focar o tratamento no apoio e encorajamento para a discussão do evento traumático. É útil educá-lo com relação aos mecanismos de manejo de afetos, cognições e comportamentos. As psicoterapias são uma alternativa viável para esses fins. Além de suas fundamentações filosóficas, podem ser utilizadas técnicas como a exposição ao evento estressor e relaxamento.  

            Em relação as intervenções preventivas, sugerem-se intervenções de curto prazo logo em seguida ao nascimento, focada no aumento da autoconfiança dos pais e intervenções realizadas por profissionais especializados.  Para intervenções de modificação do trauma, focar na melhoria das habilidades parentais e intervenções que fornecem suporte social e emocional.  

            Contudo, todos nós estamos sujeitos ou fomos sujeitos a situações traumáticas. Negar esse evento para os outros não esconderá de você. Você não é culpado pelo ocorrido. Há uma tendência de as pessoas mais velhas reassegurarem que passaram por situações difíceis e não se traumatizaram, mas não percebem e nem aceitam que alguns de seus comportamentos atuais são reações frente aos traumas. O perdão é uma atitude nobre que pode nos libertar. A terapia é um lugar seguro que possibilitará uma mudança na forma de você sentir e pensar sobre o trauma e utilizar recursos mais significativos para a mudança necessária.

 

 

Para aprofundamento veja as referências e assista ao bate-papo em forma de live em meu canal no Instagram: @eleonardorodrigues.

 

Referências:

 

Andreasen, N. C. (2005). Admirável cérebro novo: vencendo a doença mental na era do genoma. Trad. Ronaldo Cataldo Costa. Artmed.

Beck, A. T. Teoria dos transtornos da personalidade. In: Beck, A. T.; Freeman, A.; Davis, D. D. (2005). Terapia Cognitiva dos Transtornos da Personalidade; trad. Maria Adriana Veríssimo Veronese. 2.ed. Artmed.

Rodrigues, Eleonardo Pereira. Volume do hipocampo no transtorno de personalidade Bordeline com e sem transtorno de estresse pós-traumático: revisão sistematica e metanálise. (2010). 77f. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Medicina. Curso de Pós-Graduação em Medicina e Saúde. Salvador – BA.    

Rodrigues, E., Wenzel, A., Ribeiro, M. P., Quarantini, L. C., Miranda-Scippa, A., de Sena, E. P., & de Oliveira, I. R. (2011). Hippocampal volume in borderline personality disorder with and without comorbid posttraumatic stress disorder: a meta-analysis. European psychiatry: the journal of the Association of European Psychiatrists26(7), 452–456. https://doi.org/10.1016/j.eurpsy.2010.07.005.