Por *Ângela Carvalho
Quando publicou sua primeira obra,
oficialmente psicanalítica, em 1900, Freud ainda construía as bases do
arcabouço teórico da psicanálise. O pai
da psicanálise partiu de sua escuta clínica, do acompanhamento de casos
clínicos, para a elaboração de suas compreensões sobre o funcionamento
psíquico, formação de sintomas e sofrimento psíquico. Neste exercício contínuo
de soberania da clínica, as elaborações teóricas foram revisitadas inúmeras
vezes, em um permanente movimento de revisão e reformulação de conceitos. Esta
atitude freudiana de extremo compromisso com a fidedignidade de sua teoria,
destaca-se em sua trajetória.
A psicanálise é uma teoria sobre o funcionamento mental, uma técnica de
tratamento dos sofrimentos psíquicos e um método de investigação dos processos
mentais. Nasceu sustentada neste tripé, embebida no contexto vitoriano e
burguês no qual vivia Freud e seus primeiros seguidores. Em um momento
histórico em que o pensamento dito científico era dominado pelo cogito
cartesiano, Freud coloca em cena a soberania dos processos inconscientes sobre
a racionalidade. Foram as queixas histéricas com seus sintomas conversivos que
fisgaram a curiosidade do jovem neurologista Sigmund Freud, fazendo-o abordar a
problemática das pacientes a partir do universo de significações, desejos e
repressões. Nascia, assim, a psicanálise, independente da psicologia e da
medicina, com uma estrutura própria e com um objeto muito bem definido: o
inconsciente.
Nos primórdios do desenvolvimento de sua técnica
psicanalítica, Freud utilizou a hipnose e, posteriormente, a sugestão diretiva,
mas o avanço na compreensão do funcionamento psíquico e de suas leis, o levou a
abandonar todo tipo de sugestão, adotando o método da associação livre de
ideias como técnica basilar da psicanálise. A fala, livre e associativa, por
parte do paciente e a escuta flutuante do analista são as condições necessárias
para que os processos inconscientes, com seus mecanismos de defesa, sejam
acessados e ressignificados. Desta feita, a associação livre, a escuta
flutuante, o recalcamento, a transferência e o inconsciente formam os pilares
básicos da teoria e da técnica freudianas.
Apesar
de nascer atrelada intimamente à prática clínica de consultório, a psicanálise
adentrou em muitos outros campos e espaços, dando lugar à fala do sujeito do
inconsciente em diversos espaços e contextos. Através do trabalho de psicanalistas
como Melanie Klein e D. Winnicott, a técnica psicanalítica foi adequada ao
tratamento de crianças, trazendo enormes contribuições para este campo. Nas
últimas décadas, o campo de alcance da psicanálise se estendeu também à
primeira infância e aos bebês, dando lugar à produtiva e importante clínica da
intervenção precoce na psicanálise. Hoje podemos acompanhar o trabalho da
psicanálise em diversas instituições, no campo da saúde e no social, muito além
do tradicional consultório. A psicanálise também está presente nas
universidades, embasando pesquisas e intervenções, dialogando com saberes
distintos e enriquecendo seu corpo teórico/técnico. Destaco duas pesquisas, de
muitas, no campo da clínica da intervenção precoce em psicanálise, que vêm
trazendo contribuições inestimáveis para a psicopatologia materno-infantil,
sendo elas: a pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos para o
desenvolvimento infantil – IRDI e a pesquisa Preaut, esta ainda em andamento.
A pesquisa IRDI foi realizada no Brasil,
com financiamento do Ministério da Saúde, tendo duração de 8 anos e produziu um
protocolo validado para o acompanhamento do desenvolvimento emocional primitivo
em crianças de 0 a 18 meses de idade. Toda a fundamentação teórica do protocolo
teve a teoria psicanalítica como pilar e este instrumento mostrou-se valioso
para a detecção precoce de possíveis problemas de constituição psíquica e
psicopatologias em crianças pequenas. A
pesquisa Preaut, incialmente desenvolvida na França e posteriormente também no
Brasil e em outros países, visa desenvolver um protocolo de indicadores de
risco para o autismo em crianças a partir dos 4 meses e antes dos 3 anos de
idade. Ambos os protocolos, construídos a partir da psicanálise, auxiliam os
profissionais da saúde e da educação na possível detecção de sinais de
problemas no desenvolvimento e na constituição psíquica de crianças, permitindo
que uma intervenção seja realizada a tempo, antes que estruturações psicopatológicas
se cristalizem.
Certamente,
quando criou a psicanálise, Freud não imaginava todo o alcance de sua teoria,
muito menos os avanços tão fecundos em campos distintos de intervenção.
Entretanto, devemos reconhecer o espírito investigativo e destemido do pai da
psicanálise, que sempre fez questão de alimentar o avanço da sua teoria,
deixando os caminhos abertos para reformulações necessárias. E não seria esse o
verdadeiro espírito “científico”?
Referências:
Freud,
S. (1969b). A interpretação dos sonhos. In Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (W. I. de Oliveira,
Trad.; Vol. 5). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em
1900)
Maurano, Denise.
Para que serve
a psicanálise?— 3.ed. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010
Nasio, J. D. Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott,
Dolto, Lacan. Rio de Janeiro. Zahar, 1995.
Kupfer MCM, Bernardino LMF,
Jerusalinsky AN, Rocha PS, Lerner R, Pesaro ME. A pesquisa IRDI: resultados
finais. In: Lenner R, Kupfer MC, editors. Psicanálise
com crianças: clínica e pesquisa. São Paulo: Escuta; 2008. p. 221-30
*Doutorado em Psicologia, em
andamento (2017-2020), na Universidade Federal do Ceará-
UFC. Mestrado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (2011),
Pós-graduação em Psicologia Clínica pela Faculdade Santo Agostinho (2007),
Graduação em Psicologia pela Faculdade Santo Agostinho (2007). Coordenadora do
projeto de pesquisa e extensão em psicopatologia da infância - GEPEPI e da Liga
LGBT da UESPI. Tem experiência em docência na área de Psicologia, atuando
principalmente nos seguintes temas: saúde mental
materno-infantil, psicopatologia da infância, constituição psíquica e clínica
da intervenção precoce na psicanálise.